FRANÇA TERÁ DIREITOS CONEXOS NO STREAMING E SINALIZA CAMINHO AO MUNDO
Escrito por.Direto da Redação on 30 de maio de 2022
Sindicatos e representantes de músicos, cantores e produtores chegam a acordo; entenda
Por Alessandro Soler, de São Paulo
Sindicatos e entidades franceses que representam intérpretes e músicos acompanhantes chegaram a um histórico acordo com os produtores fonográficos que garantirá pela primeira vez o pagamento de direitos conexos no streaming. Os produtores concordaram em dividir com intérpretes e músicos parte dos direitos autorais que já recebem, abrindo caminho para negociações do gênero em outro países. Na opinião de especialistas, esta fórmula — por enquanto, só válida para os titulares franceses — contribui para diminuir a enorme distorção na divisão dos ganhos com a música digital, à medida que o streaming avança para se consolidar como a principal fonte pagadora mundialmente.
O acordo, fechado na semana passada, foi liderado pela Adami, sociedade francesa de gestão coletiva de direitos conexos de intérpretes e músicos, e teve a participação de sindicatos dos músicos e dos produtores fonográficos. Como maiores beneficiários diretos dos pagamentos de royalties no streaming — com, frequentemente, mais de 60% do valor correspondente ao pagamento de direitos —, os produtores aceitaram repassar aos músicos e intérpretes 10% a 11% das receitas obtidas com as execuções no streaming dos álbuns e singles dos quais estes participem.
Trata-se de uma mudança histórica porque, até agora, os únicos valores que intérpretes e músicos recebem são estabelecidos em contratos individuais, elaborados caso a caso, e assinados diretamente entre os artistas e produtores/gravadoras/selos. O modelo atual tende a beneficiar os grandes nomes da indústria, reservando parcelas pequenas dos royalties — ou, às vezes, nenhuma — aos artistas independentes ou que ainda não alcançaram a fama.
“Este acordo estabelece um quadro e uma clareza maior, ao tirar a remuneração dos músicos e intérpretes da órbita dos acordos individuais e garantir uma remuneração mínima. Ele traz a ideia da defesa dos artistas mais frágeis. São muito diferentes as negociações contratuais de um artista que é majoritário no stream, tem público grande e, portanto, bom contrato com o produtor fonográfico, e as do artista com um público mais de nicho”, diz a especialista brasileira Virginia Dias Caron, fundadora e diretora-executiva da Tropica Music & Film, uma agência sediada em Paris e dedicada à gestão e ao desenvolvimento internacional de carreiras artísticas, além do acompanhamento de catálogos, que tem entre seus clientes Mu Carvalho e a Nas Nuvens Catalog, de Liminha.
Filha do “Mutante” Sergio Dias, Virginia trabalhou em toda a cadeia de valor da música, “desde assistente de produção de show até a produção executiva, management, audiovisual, publicidade”, e pôde acompanhar de perto a luta de intérpretes e músicos por uma melhor remuneração no streaming. Para ela, o não envolvimento direto das plataformas no reconhecimento da distorção continua a ser um problema — “o ideal seria que elas aceitassem pagar aos intérpretes e músicos” —, mas o fato de os produtores franceses terem concordado em ceder parte dos seus ganhos deve ser celebrado:
“É um passo importante para sinalizar o rompimento daquele papo que vinha sendo repetido de primeiro esperar o bolo do streaming crescer para, depois, dividir. Tem que dividir já. É fundamental reconhecer a vital participação dos músicos e intérpretes nas músicas que geram bilhões todos os anos mundialmente.”
Outros dos vários pontos estabelecidos pelo acordo — autorizado por uma lei de 2016 após a demanda dos músicos e intérpretes, e que tinha como prazo máximo meados de maio deste ano, o que tornou frenéticos os dias prévios à sua conclusão — também garantem remunerações mínimas.
Segundo o texto, produtores devem pagar aos intérpretes principais de uma gravação € 1 mil para financiar os projetos. Produtores fonográficos pequenos (cujas empresas tenham até dez funcionários e não faturem mais de € 2 milhões por ano) também têm de fazer esse repasse aos intérpretes, mas no valor de € 500 por projeto. Além disso, backing vocals e músicos terão direito, diretamente, a um bônus de € 100 quando uma faixa de que participaram subir para uma plataforma de streaming, além ganhar uma participação percentual, ainda a ser determinada, quando o fonograma tiver mais de 7,5 milhões de escutas.
“É uma mudança completa de lógica. Uma decisão como essa abre as portas para acordos similares em outros países, como o nosso. As entidades que representam os músicos e intérpretes no Brasil agora têm um caso simbólico no qual se amparar para exigir o mesmo por aqui”, descreve Ana Zan Mosca, advogada paulistana especialista em direitos autorais, que pede a modernização da lei de direitos autorais ou, ao menos, um instrumento como o utilizado na França para evitar as custosas e longas ações que atualmente chegam às mais altas esferas do Judiciário:
“Avanços como a inclusão de direitos conexos no streaming deveriam estar garantidos num texto legal. Trata-se de algo mais do que justo, é urgente que se pague. Atualmente, tudo o que esteja fora da margem da atual lei de direitos autorais depende de chancela pelo STJ ou STF. É uma grande insegurança para os artistas. Além disso, não ajuda nada termos um governo declaradamente contrário à classe criativa. Os secretários que passaram recentemente pela área têm, quase todos, um desconhecimento total sobre o tema”, diz Ana. “Na França, o governo encomendou o acordo. Aqui, governo e Congresso não parecem minimamente preocupados com as indústrias criativas, que fazem a economia girar. Em vez disso, há corte de verbas, boicote à extensão da Lei Aldir Blanc, veto à Lei Paulo Gustavo…”
Para Virginia, o que o acordo francês traz de mais importante é uma mudança filosófica: o reconhecimento do direito à remuneração justa para todos os que participam da criação da música:
“O que eu quero é que o artista receba pelo trabalho dele, decentemente. É isso que me interessa nesse caso. Se vier uma solução ainda mais justa no futuro, com as plataformas dividindo melhor os seus próprios ganhos, bem-vinda será. Agora, devemos garantir o cumprimento desses pontos, buscar transparência. O caminho tem que ser esse: transparência, ética e remuneração justa.”
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